Brasileiro não gosta de ler…

Quem nunca ouviu a frase “Brasileiro não gosta de ler”, que atire a primeira pedra.
Infelizmente o estigma falacioso de que o povo brasileiro não gosta de ler continua sendo difundido pela mídia e por alguns órgãos governamentais e reforçado por muitos de nós que ouvimos, acreditamos e repetimos a mesma ladainha sem conhecimento algum de causa. O que dificilmente se vê é uma reflexão consistente sobre o assunto. Se é verdade que o brasileiro não gosta de ler, não seria esta uma consequência de um problema muito mais extenso e delicado?

Brasileiro não gosta de ler exatamente o que?

Capa - 501 Grandes EscritoresAntes de discutir sobre o (des)interesse do brasileiro pela leitura, cabe questionar de que tipo de leitura estamos falando. É comum considerar como “leitura” somente textos impressos, encapados, encadernados, publicados por alguma editora e colocados à venda nas livrarias como “livros”. Revistas, quadrinhos, jornais, sites, blogs e até mesmo (pasmem) e-books são descartados das estatísticas gerais. Ainda mais grave é o comportamento dos fãs dos tradicionais livros: há um verdadeiro bullying contra aqueles que não leem tantos livros quanto o número que alguém decidiu ser o ideal para todos os leitores por mês/ano. Não são levados em consideração perfis, ritmos e gostos distintos.
De qualquer forma, para os devidos fins, vamos supor que “leitura” seja equivalente a “leitura de livros”.

“Mas os jovens não gostam mesmo de ler!”

Em 2010 tive a oportunidade de participar de um projeto pró-leitura da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME-RJ). Nesse projeto atuei na Sala de Leitura da única escola com ensino fundamental do enorme Complexo do Lins (na Cachoeirinha, uma das 12 comunidades englobadas pelo complexo) e entre as minhas funções estavam controlar o empréstimo de livros, reunir grupos para contação de histórias e debates, além de incentivar os alunos ao uso do espaço da Sala de Leitura para pesquisas e estudos diversos. A surpresa não poderia ter sido maior, nem melhor: na primeira semana após a inauguração da sala, foram emprestados mais de 500 livros (não didáticos) aos alunos. Mais de 500 livros em uma semana, em uma escola com cerca de 2 mil alunos, dentro de uma comunidade. Acha pouco? Eu não. Os livros da Thalita Rebouças eram tão disputados que me vi obrigada a criar uma lista de espera.
“Ah, mas olha os livros que estavam lendo! Onde estão os clássicos?”
E então o problema passa a ser outro. Passa a ser a qualidade (?) do que se lê e o valor é dado somente aos cânones da literatura universal. Ora, bolas! O que há de errado em adolescentes lerem livros escritos para adolescentes, afinal? Mas, tudo bem, vamos acrescentar um novo dado sobre a minha experiência: a Sala de Leitura dispunha de uma coleção com as peças de Shakespeare, ilustradas e adaptadas ao público juvenil. Uma das alunas (do 8º ano) pegava um por semana. Combinei com ela que assim que ela terminasse a leitura de todos, eu daria de presente (do meu bolso) um exemplar com o texto integral daquele que ela tivesse gostado mais. Ela escolheu Romeu e Julieta.

Educação escolar versus o prazer de ler

Outra questão a ser levantada diz respeito ao incentivo e ensino da leitura. No início do post levantei a hipótese de que o sintoma “brasileiro não lê” é derivado de um problema muito maior. Esse problema tem nome: a desvalorização da educação. Os dados levantados sobre o número de analfabetos funcionais no Brasil, além de não serem nenhuma novidade, são alarmantes: após pesquisa feita em 2010, o IBGE divulgou que um em cada cinco brasileiros com mais de 15 anos é analfabeto funcional. Isto significa que um em cada cinco brasileiros está apto a ler, mas é incapaz de interpretar o que leu. Como gostar de algo que não compreendemos?
Também não é novidade que as aulas de literatura carecem – urgentemente – de uma profunda reforma. Os livros literários utilizados nas escolas continuam sendo os mesmos há cerca de 50 anos, em sua maior parte escritos no século XIX. Absolutamente nada tenho contra Machado de Assis, um dos meus autores preferidos, ou Aluísio Azevedo e O Cortiço, um livro interessantíssimo. Mas vale lembrar que Dom Casmurro foi escrito em 1899 e O Cortiço em 1890. Bem fez André Gazola que montou para seus alunos de 9º ano o projeto de extensão Literatura, mitologia e videogames – Uma experiência com God of War.

Bienal do Livro Rio – 2011

Bienal do Livro Rio é um evento mais que megalomaníaco que envolve editoras, livrarias, autores e leitores, e acontece a cada dois anos (!) no Rio Centro, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio. O Rio Centro possui 570 mil metros quadrados, sendo 100 mil metros quadrados de área construida com cinco pavilhões e vagas para 7 mil carros.
Quem conhece sabe que a localização do Rio Centro está longe de ser favorável e que o acesso é difícil para quem não mora na Zona Oeste. Do meu bairro, por exemplo, na Zona Norte, não há nenhum transporte público direto. E quem já participou de alguma das edições sabe também que certamente não é pelo cachorro-quente de pão e salsicha vendido a R$5, sem molho ou qualquer outro tipo de ingrediente, que o evento faz sucesso. E, ainda assim, os números são grandiosos: a edição de 2011 da Bienal do Livro Rio contou com a participação de mais de 670 mil visitantes ao longo dos 11 dias de evento, tendo seu pico de visitas no dia 7 de setembro, com 110 mil visitantes (não por acaso o mesmo dia em que a Thalita Rebouças esteve participando do Conexão Jovem, uma das atrações da Bienal). Foram vendidos, ao todo, mais de 2.8 milhões de livros (sim, milhões), com média de 5,5 livros por visitante.

Ainda há muito a ser feito

Não precisamos ser ingênuos. É claro que ainda não há como comparar o Brasil no quesito leitura com outros países em que o costume vem de berço. Os números ainda não são os que gostaríamos que fossem: dados doInstituto Pró-Livro mostram que a média é de 4,7 livros lido por ano. No Brasil o incentivo à leitura dificilmente vem de casa e, como visto, não tem funcionado muito bem dentro das salas de aula. E jovens não-leitores tem grande probabilidade de se tornarem adultos não-leitores, dando continuidade ao ciclo. O que vale agora é percebermos que “brasileiro não gosta de ler” não é uma justificativa, nem uma tese, mas uma consequência e, muitas vezes, uma falácia cuja reprodução precisa ser freada. “Uma mentira cem vezes dita torna-se verdade” (Joseph Goebbels).

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